Esta seção procura quantificar o apoio das principais instituições federais de fomento a P&D – BNDES e Finep – a projetos voltados ao desenvolvimento de tecnologias agrícolas para o setor canavieiro. O objetivo é avaliar se, ao menos no que se refere ao suporte financeiro público, tem havido estímulo adequado para o desenvolvimento de tecnologias agrícolas que, conforme visto, não vem avançando de forma plenamente satisfatória.
A base de dados utilizada para o levantamento foram os respectivos sistemas operacionais da Finep e do BNDES; e os parâmetros da consulta permitiram trazer informações dos projetos ativos 1 de desenvolvimento tecnológico relativos a qualquer etapa da produção agrícola da cana. Os resultados obtidos estão resumidos na Tabela 1.
Tabela 1 | Carteira conjunta BNDES-Finep de projetos de P&D agrícola para cana-de-açúcar (em R$ milhões)
Conforme se pode ver, o apoio federal alcançou, até o início de 2013, carteira total de cerca de R$ 220 milhões, sendo pouco mais de R$ 170 milhões dedicados ao melhoramento genético de cana e o restante, em sua maior parte, para o desenvolvimento de máquinas e implementos agrícolas canavieiros.
Para se ter uma ideia da magnitude desses recursos, ao se considerar que o desenvolvimento de uma variedade de cana superior comercialmente custa, em média, R$ 150 milhões, o total financiado hoje por BNDES e Finep seria suficiente para o desenvolvimento de apenas uma nova variedade de cana.
Ademais, nos projetos de melhoramento de cana, observa-se que apenas uma parte pequena, inferior a 20%, envolve o desenvolvimento de variedades transgênicas, o que evidencia a menor prioridade justamente para a rota tecnológica que, conforme visto, apresenta maior potencial de ganhos quando comparada ao melhoramento clássico.
Ao analisar os dados relativos aos instrumentos financeiros de maior mitigação de risco – Finep FNDCT, BNDES Funtec e Finep Subvenção –, que operam de forma não reembolsável, verifica-se que os projetos para melhoramento de cana estão sendo apoiados com cerca de R$ 41 milhões.
Desse total, apenas pouco mais de R$ 2 milhões foram destinados ao melhoramento transgênico e, além disso, não foi encontrado sequer um projeto de subvenção, o que videncia a inexistência de projetos de maior risco realizados por empresas. Assim, todos os projetos apoiados com recursos não reembolsáveis são liderados por universidades e institutos de pesquisa, indicando o caráter de pesquisa mais básica e, portanto, de menor capacidade de gerar inovações no curto e no médio prazos.
Já em relação ao apoio às tecnologias de plantio e colheita, dos cerca de R$ 43 milhões em carteira financiados por BNDES e Finep, mais de 90% são apoiados por meio de instrumentos não reembolsáveis, o que evidencia o caráter mais arriscado dos projetos. Contudo, mais da metade desses investimentos são liderados por universidades e institutos de pesquisa, o que novamente evidencia a natureza mais científica e menos comercial dessas iniciativas.
Diante disso, pode-se dizer que o apoio federal à atividade de P&D agrícola canavieira, além de ser incompatível com as necessidades do setor, deveria ser redirecionado para rotas tecnológicas de maior potencial, como a transgenia e sistemas mais eficientes de plantio e colheita. Ademais, deveria haver um maior equilíbrio na utilização de instrumentos não reembolsáveis entre empresas e instituições de pesquisa/universidades.
O cenário descrito até aqui aponta para uma clara defasagem tecnológica significativa na produção da cana-de-açúcar. Conforme visto, a produtividade atual, da ordem de 11.000 kg de ATR/ha, poderia chegar a algo em torno de 60.000 kg/ha, volume quase seis vezes maior. Além disso, o ritmo da evolução tecnológica vem perdendo fôlego nos últimos anos.
Considerando-se o ritmo dos últimos quarenta anos, cujo crescimento médio da produtividade agrícola tem se situado em torno de 1% a.a., seriam necessários aproximadamente duzentos anos para que esse potencial fosse atingido.
O aumento crescente do custo de produção de etanol e açúcar, cuja participação dos custos agrícolas é de cerca de 70%, torna esse cenário de lento crescimento de produtividade ainda mais preocupante. O aumento do consumo doméstico de gasolina em detrimento do etanol ilustra, de certo modo, essa perda relativa de competitividade do setor. 2
Entre os diversos fatores determinantes desse cenário, ressalta-se o fato de que o investimento no desenvolvimento tecnológico vem sendo feito em ritmo e intensidade incompatíveis com a importância do setor para o Brasil.
Por um lado, do ponto de vista de retorno social, a indústria sucroenergética cumpre papel de alta relevância para o Brasil, seja pela capacidade de: (i) gerar internamente valor econômico, 3 (ii) abastecer mais da metade do consumo de combustíveis de sua frota de veículos leves,4 (iii) proporcionar a geração de bilhões de dólares em divisas, tanto por meio de exportações 5 quanto pela substituição de importações 6 e (iv) adicionar significativo potencial elétrico à rede. 7
Por outro lado, a lavoura de cana é, em nível mundial, quase trinta vezes inferior à lavoura de cereais, o que limita os investimentos em P&D a volumes menores, essencialmente dedicados a avanços incrementais. Contudo, por ter maior complexidade genética e por serem maior o volume e a quantidade de biomassa por hectare que precisam ser manejados, o desenvolvimento de tecnologias agrícolas para cana é, sem dúvida, mais desafiador e, na opinião de especialistas, mais dispendioso. Combinados, esses fatores geram uma situação de relativa baixa atratividade para investimento em P&D, quando comparada à situação dos cereais.
Na atual conjuntura, portanto, é possível dizer que se observa um agravamento do clássico problema advindo da discrepância entre os retornos privado e social do investimento em P&D [North e Thomas (1973)].
Desse modo, torna-se justificável a criação de mecanismos públicos de fomento que permitam acelerar a velocidade do desenvolvimento das tecnologias agrícolas para cana, pois, se mantido o ritmo atual para os próximos anos, o país enfrentará a intensificação de uma tendência já iniciada de perda crescente da competitividade do setor sucroenergético.
Justificativa para execução de uma ação de fomento coordenada
O modelo inaugurado pelo Plano Conjunto de Apoio à Inovação Tecnológica Industrial dos Setores Sucroenergético e Sucroquímico (PAISS), ao conjugar instrumentos financeiros diversos e, dessa forma, abrir uma "janela de oportunidade" de acesso a mecanismos com maior mitigação de risco, como BNDES Funtec e Finep Subvenção, constitui alternativa interessante para alterar a conjuntura de letargia tecnológica evidenciada pelas seções precedentes.
O acesso a instrumentos de maior mitigação de risco, por operarem de forma não reembolsável, cria uma oportunidade, restrita no tempo, para que os projetos de P&D mais arriscados/dispendiosos se tornem viáveis, pois a parcela custeada pelo financiamento público permite ajustar o retorno ao risco do investimento, incentivando as empresas a inovar de forma mais radical.
Ademais, o formato PAISS cria uma salutar concorrência entre empresas, o que incentiva todos os envolvidos na indústria a participar da janela de oportunidade e alavancar seus investimentos em P&D. A possibilidade de não acessar os recursos incentivados ao mesmo tempo em que seu concorrente os acessa pode aumentar o risco de a empresa ficar defasada tecnologicamente e, possivelmente, em posição comercial inferior.
Além de atrair novos entrantes e incitar a concorrência, o modelo PAISS permite ainda incentivar a criação de consórcios entre empresas para o desenvolvimento tecnológico. Essa característica se mostra importante no caso de desenvolvimento de tecnologias agrícolas, tendo em vista que: (i) a participação de usuários finais, isto é, usinas de cana, é fundamental para o sucesso comercial das inovações agrícolas que se pretende incentivar e difundir e (ii) as diversas tecnologias agrícolas têm necessariamente de ser desenvolvidas de forma a gerar complementaridades, formando pacotes tecnológicos integrados.
Outra vantagem de uma ação de fomento coordenada é sua capacidade de direcionar o investimento para tecnologias consideradas de maior potencial econômico. Conforme discutido neste trabalho, entre as possibilidades para superar os desafios tecnológicos que poderiam alterar significativamente o atual patamar de produtividade agrícola, podem-se citar os desenvolvimentos de:
Além do estímulo ao investimento em novas tecnologias agrícolas pelas empresas, há ainda grande espaço para pesquisas de perfil mais científico, sobretudo no que tange aos conhecimentos sobre a biologia da cana, insumo fundamental para avanços tanto no melhoramento transgênico como no clássico.
Embora tenha havido iniciativas importantes, como os programas Sucest e Bioen, cujos resultados foram bem-sucedidos no que se refere ao sequenciamento genético da cana-de-açúcar, ainda restam significativos desafios científicos para que o desenvolvimento de variedades de cana –transgênicas ou não – avance de forma mais rápida no Brasil. De acordo com a opinião de alguns especialistas entrevistados, dentre tais desafios, destacam-se:
Um eventual fomento à pesquisa básica, contudo, deve ser necessariamente realizado em conjunto com empresas interessadas em melhorar geneticamente a cana, de forma a orientar os estudos para resultados de maior interesse econômico e, assim, agilizar a utilização dos conhecimentos gerados no desenvolvimento de novas variedades de cana.
Outro tema de pesquisa básica que pode colaborar com o aumento do potencial produtivo da cana seria a avaliação técnico-econômica dos diferentes sistemas de irrigação disponíveis para o setor sucroenergético. Como foi visto, parte dos entrevistados atribui a baixa utilização de irrigação a um possível desconhecimento e/ou incerteza das usinas com relação ao retorno econômico que as diferentes opções tecnológicas podem efetivamente gerar.
Na opinião de diversos especialistas entrevistados, é consenso a necessidade de investir na formação de profissionais, gerando sólido conhecimento em biotecnologia, de maneira que fiquem habilitados para desenhar, avaliar e produzir organismos geneticamente modificados em escala industrial, levando em consideração questões de natureza ambiental, regulatória e empresarial. Segundo os entrevistados, os atuais cursos de biotecnologia, além de raros, têm perfil mais teórico do que aplicado, limitando a oferta de profissionais às empresas.
É oportuna, portanto, a avaliação da possibilidade de se estruturarem cursos em níveis de graduação e pós-graduação para formação de profissionais em áreas correlatas à biotecnologia, com ênfase na interface com as empresas do setor de bioenergia, visando ao alinhamento constante do conteúdo programático com as necessidades do mercado.
Uma vez desenvolvidas novas tecnologias agrícolas para cana que, comprovadamente, ofereçam performances técnico-econômicas superiores às utilizadas hoje, o BNDES poderia avaliar a pertinência de criar mecanismos que acelerassem sua difusão entre as usinas.
Tal como ocorre atualmente com os sistemas de cogeração mais eficientes, 8 cujo nível de participação do BNDES em seu financiamento é superior ao nível em sistemas de média e baixa pressão, as tecnologias agrícolas mais eficientes poderiam receber tratamento semelhante.
Outro mecanismo que pode auxiliar na difusão tecnológica é o prazo de financiamento. Alguns sistemas, como é o caso de certas opções de irrigação, exigem investimento muitas vezes considerado elevado. Tal esforço de investimento poderia ser minimizado se financiado com prazos mais dilatados de amortização.
1 Consideram-se projetos ativos aqueles em que ainda há desembolsos de recursos ou ainda estão em fases de execução. Não são considerados os projetos já encerrados ou que já foram completamente amortizados.
2 Para uma discussão mais detalhada dos fatores que têm inibido o desenvolvimento da produção de etanol no Brasil, ver Milanez et al. (2012).
3 Segundo Varrichio (2012), a importância econômica da indústria da cana é comparável à da automobilística. Para verificar o valor adicionado pela cadeia sucroenergética, a autora utiliza como indicador o Valor de Transformação Industrial (VTI) disponível na Pesquisa Industrial Anual do IBGE. Em 2006, a cadeia sucroenergética apresentou VTI de R$ 18,18 bilhões; ao passo que a aeronáutica, R$ 3,42 bilhões; a petroquímica, R$ 12,32 bilhões; e a automobilística, R$ 18,46 bilhões.
4 Em Milanez et al. (2012), estimou-se a atual capacidade instalada de destilarias no Brasil em cerca de 36 bilhões de litros de etanol, ou 25 bilhões de litros de gasolina equivalente. Segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), em 2011 foram consumidos pouco mais de 26 bilhões de litros de gasolina e vinte bilhões de litros de etanol, perfazendo um consumo total de quarenta bilhões de litros de gasolina equivalente.
5 Segundo dados elaborados pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), em 2012, o setor exportou cerca de US$ 14 bilhões, dos quais US$ 2 bilhões referentes a vendas de etanol e o restante para açúcar. Considerando que o Brasil exportou cerca de US$ 250 bilhões, em 2012, a contribuição do setor sucroenergético foi de quase 6%.
6 Segundo a ANP, em 2012 foram importados aproximadamente quatro bilhões de litros de gasolina. Sem a produção local de etanol de mais de vinte bilhões de litros, as despesas com importação de gasolina mais do que quadruplicariam.
7 Para uma discussão mais detalhada do potencial elétrico do setor canavieiro, ver Nyko et al. (2011).
8 Nos projetos de cogeração com caldeiras de alta pressão, acima de 60 bar, o nível de participação do BNDES pode chegar a até 90%. Nos demais casos, que envolvem caldeiras de pressões inferiores, o nível de participação é de até 80%.